PERDOA-ME POR ME TRAÍRES Por Nelson Rodrigues
Pior traição é trair seus desejos, sua vontade de viver, nessa vida tão fatídica e curta… Oportunidades que passam e não sonhamos, não vivemos… (Cristian Stassun) e sobramos como a música do Raul (medo da chuva):
“Como as pedras imóveis na praia
Eu fico ao teu lado
Sem saber dos amores que a vida me trouxe
E eu não pude viver”
“Aprendi o segredo, o segredo
O segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas
No mesmo lugar”
PERDOA-ME POR ME TRAÍRES
Por Nelson Rodrigues – tragédia de costumes em três atos (1957)
GILBERTO Recuso! Eu não acredito em provas, eu não acredito em fatos e só acredito
na criatura nua e só.
TIO RAUL Mas é uma adúltera.
GILBERTO A adúltera é mais pura porque está salva do desejo que apodrecia nela.
GILBERTO […] Quantas coisas deixamos de amar, quantas coisas esquecemos de amar. Mas chego aqui e vejo o quê? Que ninguém ama ninguém, que ninguém sabe amar
ninguém. Então é preciso trair sempre, na esperança do amor impossível. (agarra o
irmão) Tudo é falta de amor: um câncer no seio ou um simples eczema é o amor não
possuído!
TIO RAUL (Contido) — E, finalmente, qual é a conclusão?
MÃE (Para si mesma) — Meu filho não diz coisa com coisa…
GILBERTO É que Judite não é culpada de nada! E, se traiu, o culpado sou eu, culpado
de ser traído! Eu o canalha!
TIO RAUL (Segura Gilberto pelos braços e sacode-o) — Tua cura é um blefe. A tua
generosidade, doença! Agora sim, é que estás louco!
GILBERTO (Recuando) — Vocês exigem o quê, de mim?
TIO RAUL O castigo de tua mulher?
MÃE Humilha bastante!
PRIMEIRO IRMÃO Marca-lhe o rosto!
GILBERTO Devo castigá-la eu mesmo? Na frente de vocês? (com súbita exaltação)
Judite! Judite! (para os outros) Vocês vão ver! Vocês vão assistir! (grita) Judite! Judite!
JUDITE (Aparece, em pânico) — Que foi, meu Deus do céu?
(Silêncio geral. E, fora então, de si, o marido atira-se aos pés de Judite)
GILBERTO (Num soluço imenso) — Perdoa-me por me traíres!
JUDITE (Desprende-se num repelão selvagem) (apontando) — Está louco!
GILBERTO (Sem ouví-la) — Perdoa-me!
JUDITE (Para a família) — Não está em si! Eu não traí ninguém!
TIO RAUL (Para a família que se agita) — Ninguém se meta! Ninguém diga nada!
(para a cunhada, caricioso e hediondo) Pode falar, Judite! Quer dizer que você concorda
conosco? Acha também que seu marido recaiu, digamos assim?
GILBERTO Não responda, Judite!
JUDITE Mas é evidente que está alterado… E, depois não tem cabimento: diz
“Perdoa-me por me traíres”, ora veja!
TIO RAUL E acha que êle deve ser internado, não acha Judite? Diga para a sua sogra,
seus cunhados, diga Judite!
JUDITE (Crispada e com certa vergonha) — Deve ser internado!
TIO RAUL (Rápido e violento) — Vocês me ajudem!
GILBERTO Mas que é isso?
(Gilberto é seguro, primeiro por Raul e, em seguida, pelos outros. O doente
esperneia e soluça)
MÃE Cuidado, não machuquem meu filho!
GILBERTO Amar é ser fiel a quem nos trai!
TIO RAUL (Arquejante) — É preciso! Você não pode ficar sôlto! (para os outros)
Ponham num táxi e levem para a casa de saúde, já!
GILBERTO (Aos berros) — Não se abandona uma adúltera!
MÃE (Chorando) — Você vai ficar bom, Gilberto!
(Saem Gilberto e os outros. Ficam Raul, D. Nieta e Judite)
JUDITE Eu não entendo porque os médicos deram alta!
TIO RAUL (Está de costas para ela) — Judite, por obséquio, quer trazer um copo de
água?
JUDITE Mineral ou do filtro?
TIO RAUL Do filtro. Meio copo basta.
(Judite sai de cena)
MÃE (No seu ódio, acompanhando-a com o olhar) — Como é limpa, como é cheirosa!
Imagina tu que ela própria me disse que fazia a higiene íntima três vêzes por dia, se tem
cabimento! Tanto asseio não havia de ser para o marido, duvido!
TIO RAUL (Saturado) — Mamãe, o problema não é êsse, mamãe. Eu resolvo tudo,
pode deixar. E saia um momento; espera lá fora, sim mamãe?
MÃE Humilha, ofende, mas sem violência. Violência, não. Nada de bater.
(Sai. Judite reaparece com o copo de água. Raul apanha o copo)
JUDITE Isso me estragou o dia.
TIO RAUL Obrigado, Judite. Estragou o dia, acredito. Primeiro vou adicionar isso
aqui… (está pondo um pózinho) um marido internado é muito repousante… (sóbrio e
inapelável) Agora, toma!
JUDITE (Recuando) — Para mim?
TIO RAUL Segura!
JUDITE (Está com as mãos para trás) — Mas que é isso?
TIO RAUL (Ainda contido) — Adivinha!
JUDITE (Com esgar de chôro) — Remédio?
TIO RAUL Veneno.
JUDITE (Com voz estrangulada) — Você enlouqueceu?
TIO RAUL Estou no lugar do irmão louco. Negas que tens um amante?
JUDITE Nego. E você não é meu marido!
TIO RAUL Te direi um detalhe, um detalhe só, e verás que é inútil mentir. (com um
riso estrangulado) É verdade ou não que teu amante exige que lhe digas pornografias?
(exultante) E não te contarei como soube disso, não! Talvez espiando no buraco da
fechadura, ou ouvindo nas portas! (corta o riso vil) Agora confessa a mim, antes de
morrer: tens um amante?
JUDITE (Com um riso soluçante) — Um amante? Um só? Sabes de um e não
sabes dos outros? (violenta e viril) Olha: vai dizer a tua mãe, a teus irmãos, às tuas tias —
fui com muitos, fui com tantos! (súbitamente grave e terna) Já me entreguei até por um
bom-dia! E outra coisa que tu não sabes: adoro meninos na idade das espinhas!
TIO RAUL (Num soluço) — Ou te matas ou te mato! Bebe!
JUDITE (Mudando de tom, quebrando a voz num soluço) — Eu me arrependo do
marido, não me arrependo dos amantes! (apanha o copo que vai levando à bôca,
lentamente. Enrouquecida.) — Minha filha!
(Judite bebe de uma só vez. Em seguida larga o copo que se estilhaça no
chão. Cai de joelhos, com as entranhas em fogo e tem um gemido grosso,
de homem. Ainda agoniza quando o exausto Raul vai encontrar-se com a
mãe)
MÃE Passaste-lhe uma boa descompostura?
TIO RAUL (Exausto de odiar e quase doce) — Ela não trairá nunca mais…