Entrevista Agamben para a Folha
A política da profanação
O filósofo italiano Giorgio Agamben diz que a política externa
norte-americana é o exemplo maior do Estado contemporâneo – uma máquina
que produz a desordem e ganha legitimidade ao administrá-la
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA DE SÃO PAULO
A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que
vivemos é, na verdade, regra geral. Precisamos construir um conceito de
história que corresponda a essa verdade.” Esta afirmação programática
de Walter Benjamin resume bem o que anima o projeto intelectual de
Giorgio Agamben nos últimos anos.
Responsável pela edição italiana das obras completas de Benjamin,
ex-aluno de Heidegger, autor, juntamente com Deleuze, de trabalhos
sobre teoria literária e filosofia, este professor da Universidade de
Verona, nascido em 1942, é atualmente um dos filósofos mais importantes
de sua geração.
Uma das razões para tanto é, para além da multiplicidade de seus
objetos de interesse, sua capacidade em fornecer um quadro de análises
para a situação sócio-jurídica que marca a política contemporânea.
Partindo das vias abertas por Michel Foucault [1926-1984] por meio das
análises dos mecanismos de normatização da vida na sociedade
contemporânea, Agamben vem desenvolvendo um amplo estudo sobre os
desdobramentos dos dispositivos do poder em vários livros que compõem a
série “Homo Sacer”.
No cerne de tal projeto está a compreensão da centralidade do estado
de exceção enquanto paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas
que procuram normatizar o campo da política e da ação social. Que o
espectro da “suspensão legal” da lei, que este reconhecimento da lei
que pode conviver com sua própria suspensão seja o “motor imóvel” das
democracias contemporâneas: eis algo que Benjamin indicara, mas que
Agamben soube explorar como ninguém antes dele.
Contribuiu para isso o estado atual do mundo, onde os governos são
cada vez mais marcados pela lógica da segurança e da guerra infinita. O
mesmo curso que levou Agamben a recusar-se a lecionar nos EUA a fim de
protestar contra a política de segurança norte-americana.
Para ele, os Estados contemporâneos -especialmente os EUA-, mais do
que garantidores e administradores da ordem, são máquinas de produção e
gestão da desordem -que permitem intervenções que lhes dão legitimidade
e poder. Agamben compara o mecanismo ao princípio teológico da
Providência -segundo ele, a teoria do “governo divino” do mundo.
“O que define a ação providencial é que, na verdade, ela não se impõe
do exterior, mas funciona deixando agir a natureza mesma das criaturas
que, desta forma, continuam responsáveis pelos seus pecados”, ele
afirma.
Mas ao analisar o problema do estado de exceção, o filósofo italiano
não procura apenas dar conta de uma situação jurídico-política que
parece se impor como regra cada vez mais universal para as sociedades
contemporâneas. O que ele tem em mente é, na verdade, a crítica a uma
tendência hegemônica na modernidade em vincular razão e norma,
racionalidade e normatização da vida. Com isto, abre-se um amplo quadro
de questões vinculadas à reorientação das expectativas da razão moderna
e de seus modos de racionalização. É neste quadro que Giorgio Agamben
se move.
É para falar sobre estas e outras questões que Agamben vem, pela
primeira vez, ao Brasil, para palestras entre os dias 22 e 29 de
setembro. A seguir, trechos da entrevista que ele concedeu à Folha na
semana passada.
Folha – O senhor possui atualmente um vasto campo de trabalho no
interior do qual se cruzam estética, teoria da literatura, filosofia
política, psicanálise, história e filosofia do direito. O senhor é
também o responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin.
Há questões comuns que orientam sua incursão nestes múltiplos campos de
interesse?
Giorgio Agamben – A lógica que guia minha pesquisa não é a lógica da
substância e do território separado com fronteiras bem definidas. Ela
está mais próxima do que, na ciência física, chamamos de um “campo”,
onde todo ponto pode a um certo momento carregar-se de uma tensão
elétrica e de uma intensidade determinada. Filosofia, política,
filologia, literatura, teologia, direito não representam disciplinas e
territórios separados, mas são apenas nomes que damos a esta
intensidade.
A configuração do que você chama de meus “múltiplos campos de
interesse” depende pois da contingência capaz de determinar uma tensão
na situação histórica concreta em que me encontro. De resto, trata-se
do que, há um tempo atrás, era o mínimo esperado de uma pessoa culta
-este a quem Nietzsche chamava “um bom europeu”.
Não devemos esquecer, por exemplo, que é impossível haver filosofia
sem filologia, da mesma forma como é impossível teoria sem história.
Para mim, assim como para Foucault, a investigação histórica do passado
é apenas a sombra da interrogação histórica sobre o presente. E
atualmente, mais do que nunca, a arqueologia é a única via de acesso ao
presente.
Folha – Qual é a trajetória de pesquisa que o levou a identificar, no
estado de exceção, o fenômeno jurídico maior na compreensão da
normatização da vida contemporânea?
Agamben – Primeiramente, gostaria de lembrar que, atualmente, o
direito é, de fato, um dos meus principais canteiros de trabalho. O
outro é a teologia. Qual a razão desta escolha? Eu poderia responder -e
isto não seria necessariamente uma brincadeira- que o direito e a
teologia são os dois únicos domínios nos quais Foucault não trabalhou
realmente, o que me dava uma certa liberdade.
Mas a verdade é que não é possível atualmente pensar a política e sua
história sem se engajar em pesquisas arqueológicas que articulam o
direito e a teologia. Não digo isto por acreditar em alguma espécie de
primado destas disciplinas. O fato é que no interior dos mecanismos e
relações de poder, conceitos jurídicos e teológicos continuam a agir de
maneira mais ou menos consciente, e são seus funcionamentos e efeitos
que me interessam.
Creio que Foucault tinha razão ao dizer que queria deixar de lado os
ditos “universais” (o Estado, a Lei, a Soberania, o Poder), a fim de
analisar o processo concreto e os dispositivos que realizam as relações
de poder. Desta forma, ao trabalhar sobre o estado de exceção, não se
tratava para mim de responder a questões como: “O que é o direito?”, “o
que é o Estado?”, mas de procurar compreender o modo por meio do qual a
máquina político-jurídica funciona.
Ou seja, não parto de questões como: “O que é e o que não é legal?”,
ou mesmo “o que é e o que não é justo?”, mas “como se realiza a relação
entre violência e direito?”, “como é possível desativar tal relação?”.
Descobrir que o estado de exceção era, por assim dizer, o motor imóvel
da máquina jurídica ocidental foi para mim muito instrutivo.
Folha – O senhor diz, em “Estado de Exceção”, que devemos pensar a
política para além do jurídico. Mas, se em nossas sociedades
democráticas, como o senhor afirma, o estado de exceção é a regra, isto
significaria que não há mais espaço político no interior do sistema
parlamentar de representação? E, se devemos pensar a política para além
do jurídico, devemos então abandonar a aspiração moderna de
constituição de um Estado Justo?
Agamben – Veja, sua pergunta sobre qual seria a constituição de um
Estado Justo me parece abstrata e, como tal, realmente não me
interessa. Não se trata mais, como era ainda legítimo na época de
Rousseau, de escrever a Constituição da Polônia ou da Córsega. Deixo
esta questão para os juristas criminais que acreditam poder escrever a
Constituição democrática do Iraque. Ou aos tecnocratas ingênuos que
acreditaram poder escrever a Constituição européia sem se perguntar se
havia, em algum lugar, um poder constituinte que os autorizava. Pois é
a própria relação entre política e direito que deve ser questionada.
Problema este que a tradição marxista sempre negligenciou por acreditar
que o direito, em última instância, era um instrumento neutro do qual
poderíamos nos servir sem problemas.
De fato, nossa concepção de democracia ainda está muito dominada pelo
paradigma do Estado de Direito, ou seja, pela idéia de que podemos
estabelecer um quadro constitucional e normativo a partir do qual uma
sociedade justa advém possível. Mas minhas pesquisas me mostraram que o
problema fundamental não diz respeito à Constituição ou à lei; diz
respeito ao governo.
Rousseau ainda acreditava ser capaz de liquidar o problema do governo
ao vê-lo como poder executivo, como potência que “executa” o que a
vontade geral estabeleceu. Trata-se de uma ingenuidade imperdoável. O
verdadeiro ponto misterioso da política ocidental não é o Estado, não é
a Constituição, não é a soberania, mas o governo. Não o soberano, mas o
ministro. Não o legislador, mas o funcionário.
A pesquisa na qual estou atualmente engajado diz respeito exatamente à
tentativa de compreender o modo por meio do qual a máquina
governamental ocidental funciona. Trata-se de olhar a política e o
direito a partir de uma nova perspectiva na qual as hierarquias se
invertem e o poder considerado executivo -a “polícia”, no sentido lato-
advém o problema central. Mas, mesmo aqui, não faço mais do que alargar
o trabalho de Michel Foucault.
Folha – O sr. diz ainda que a declaração clara do estado de exceção
está sendo substituída paulatinamente pela generalização do paradigma
de segurança como técnica normal de governo. Os EUA seriam, no seu
ponto de vista, um caso exemplar?
Agamben – Em um de seus cursos no Collèqe de France, Michel Foucault
mostrou como funciona a segurança enquanto paradigma de governo. Para
Quesnay, Turgot e os ministros fisiocratas, que nesta matéria foram os
primeiros, não se tratava, por exemplo, de prevenir as grandes
penúrias, mas de deixá-las ocorrer para, em seguida, dirigi-las e
orientar os modos de atravessá-las. A segurança como paradigma de
governo não nasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem.
É neste sentido que a segurança, juntamente com o estado de exceção, é
o paradigma fundamental da política mundial. Como disse um funcionário
da política italiana durante as investigações judiciárias que se
seguiram às mortes na manifestação antiglobalização em Gênova: “O
Estado não quer que imponhamos a ordem, mas que administremos a
desordem”.
Parece-me evidente que este é o princípio que guia, particularmente, a
política exterior norte-americana, mas não apenas ela. Trata-se de
criar zonas de desordem permanente (“zones of turmoil”, como dizem os
estrategistas) que permitem intervenções constantes orientadas na
direção que se julgar útil. Ou seja, os Estados Unidos são hoje uma
gigantesca máquina de produção e gestão da desordem.
É curioso como tudo isto se encontra em um dos paradigmas teológicos
que tenho trabalhado: este que diz respeito à doutrina da Providência.
Os conceitos de ordem e segurança foram elaborados como paradigmas de
governo, pela primeira vez, no interior desta doutrina. Não devemos
esquecer que a Providência ocupou a mente de filósofos e teólogos por
quase 15 séculos, dos Estóicos até São Tomás, de Plutarco a Leibniz, de
Boécio aos fisiocratas. A teoria da Providência não é outra coisa que a
teoria do governo divino do mundo, ou seja, do melhor governo possível.
Por isto, a Providência não opera de modo violento ou miraculoso, mas,
tal como nos governos democráticos, ela precisa do livre-arbítrio dos
indivíduos. O que define a ação providencial é que, na verdade, ela não
se impõe do exterior, mas funciona deixando agir a natureza mesma das
criaturas que, desta forma, continuam responsáveis pelos seus pecados.
A Providência é, neste sentido, um paradigma da democracia moderna e
não é surpreendente que ela tenha influenciado profundamente um
pensador como Rousseau. O Estado moderno, no que ele tem de melhor
quanto de pior, provém deste Estado-Providência.
Folha – O senhor fala, ao final de “Estado de Exceção”, a respeito da
necessidade de abrirmos espaço a uma “violência pura” capaz de expor e
de cortar o vínculo entre violência e direito. Esta idéia de “violência
pura” é algo como uma idéia reguladora ou o senhor tem em mente
situações revolucionárias concretas que teriam o valor de paradigma?
Agamben – É importante precisar o que devemos entender por “pura”
quando se fala de violência. Não se trata, em absoluto, de um caráter
ou de uma propriedade substancial próprio a certos tipos de atos
violentos, isto em detrimento de outros. Como Benjamin disse muito
claramente, a pureza de um ser ou de uma coisa nunca reside neste
próprio ser, nunca está na origem, mas depende da relação entre este
ser e algo de externo. No nosso caso, trata-se do direito.
Benjamin definia como “pura” esta violência que quebra a relação entre
violência e direito. Não se trata aqui de uma “violência criadora”
(como é o caso, por exemplo, do poder constituinte que cria um novo
direito), mas de uma violência que interrompe e depõe o direito. Por
outro lado, não se trata de uma idéia reguladora.
O que está realmente em questão é, na verdade, a possibilidade de uma
ação humana que se situe fora de toda relação com o direito, ação que
não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o
direito. Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua
luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de
um uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade.
E talvez “política” seja o nome desta dimensão que se abre a partir de
tal perspectiva, o nome de livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo
como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela
está mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um
corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram subjetivar, no
direito, as ações humanas.
Por isto, tenho trabalhado recentemente sobre o conceito de
“profanação” que, no direito romano, indicava o ato por meio do qual o
que havia sido separado na esfera da religião e do sagrado voltava a
ser restituído ao livre uso do homem.
Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de “Um Limite Tenso –
Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise” (ed. Unesp).
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Conceitos de Agamben
Estado de exceção – Criada pela Assembléia Constituinte francesa em
1791 sob o nome de “estado de sítio”, a figura de um quadro legal para
a suspensão da ordem jurídica em “casos extremos” aplicava-se
inicialmente apenas às praças-fortes e portos militares. Em 1811, com
Napoleão, o estado de sítio podia ser declarado pelo imperador a
despeito da situação efetiva de uma cidade estar sitiada ou ameaçada
militarmente. A partir de então, vemos um progressivo desenvolvimento
de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, Suíça, Itália, Reino
Unido e EUA, que serão aplicados, durante os séculos 19 e 20, em
situações variadas de emergência política ou econômica. Giorgio Agamben
compreende tal desenvolvimento como a manifestação de um processo de
generalização dos dispositivos governamentais de exceção. Processo este
que teria sido o motor invisível das democracias ocidentais (o que
Agamben tenta salientar ao aproximar a lógica da exceção e o problema
do lugar do soberano nas teorias clássicas da filosofia política). Por
um lado, tal teoria da generalização progressiva do estado de exceção
procura fornecer o quadro de análise para a tendência contemporânea em
criar situações nas quais a distinção entre estado de guerra e estado
de paz seja impossível. Indistinção que visaria, assim, transformar o
estado de exceção em regra universal. No entanto, a partir desta teoria
da centralidade de processos de suspensão da norma que não equivalem
necessariamente à abolição da norma, Agamben procura fazer mais do que
fornecer uma visão das tendências que atuam na estrutura
político-jurídica contemporânea. Ele visa fundamentalmente criticar uma
noção de razão vinculada à crença de que racionalizar é assegurar a
vida por meio da posição de critérios normativos de justificação
intersubjetivamente partilhados. Neste ponto, o trabalho de Agamben
aparece como um desdobramento das reflexões de Michel Foucault sobre os
modos de coincidência entre a norma racional e o seu outro.
Biopoder – Termo cunhado por Michel Foucault para dar conta da
centralidade, na consolidação do poder na modernidade, daquilo que o
filósofo chama de “administração dos corpos” e de “gestão calculista da
vida”. Foucault insiste no fato de que tal transformação da vida humana
em objeto do poder soberano implicou em sua redução à condição de pura
vida biológica, vida pronta para ser administrada pelos dispositivos
ordenadores do poder ou, ainda, redução àquilo que Agamben chama de
“vida nua”. Neste sentido, a contribuição mais importante de Agamben no
interior do debate sobre as estruturas do biopoder consiste em mostrar
como a vida nua vai progressivamente coincidindo com a integralidade do
espaço político, no sentido de ela ser posta como a figura hegemônica
da vida que pode aparecer no interior do espaço político. Isto implica
necessariamente compreender qual a estrutura jurídica própria a um
poder que reduz a vida à condição de mera vida biológica. É neste ponto
que se articulam os livros “Homo Sacer” e “Estado de Exceção”.
Homo sacer – Partindo do fato de que no termo latino “sacer” convergem
duas determinações aparentemente opostas de sentido (“sagrado” e
“maldito” ou “matável”), Agamben procura dar conta do verdadeiro
sentido da sacralidade da vida enquanto princípio inviolável e elemento
político originário. As determinações opostas de “sacer” apenas
indicariam aquele que está fora tanto do direito humano (por ser
sagrado) quanto do direito divino (por ser matável de maneira não
sacrificial). Habitante excedente de uma zona de indistinção entre a
vida humana e a morte consagrada, o “homo sacer” demonstraria como a
sacralidade é apenas a figura perfeita de uma vida nua cada vez mais
presente. Com isto, Agamben procura dar conta do sentido biopolítico de
políticas de vitimização (baseadas na dissociação entre os direitos do
homem e os direitos do cidadão) e de situações contemporâneas nas quais
sujeitos são, cada vez mais, jogados em zonas de anomia.
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O FILÓSOFO NO BRASIL
DA REDAÇÃO
O filósofo Giorgio Agamben, professor da Universidade de Verona, na
Itália, participa neste mês de uma série de conferências em São Paulo,
no Rio de Janeiro e em Florianópolis.
Um dos grandes pensadores europeus da atualidade, Agamben nasceu em
Roma, em 1942. Suas pesquisas envolvem teoria literária, política,
religião e arte. Agamben dá aulas no European Graduate School (Suíça) e
é professor de filosofia no Collège International de Philosophie, de
Paris, além de lecionar na Universidade de Macerata (Itália). Atuou
como professor visitante em diversas universidades norte-americanas
como Berkeley, Los Angeles, Irvine, Santa Cruz e Northwestern.
Em São Paulo, ele participa no dia 22, na USP, de uma mesa-redonda com
Paulo Arantes e Vladimir Safatle com o tema “Oikonomia: Sobre a Gênese
Teológica do Governo”. No Rio de Janeiro, vai proferir no dia 26 a
palestra “O que é um Dispositivo?” (Fundação Casa de Rui Barbosa, r.
São Clemente, 134, Botafogo, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/
3289-4600). No dia 27, em Niterói (Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia da Universidade Federal Fluminense, no campus Gragoatá, no
Auditório do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia), vai proferir
conferência também com o tema “Oikonomia: Sobre a Gênese Teológica do
Governo”. O mesmo tema será abordado em conferência no dia 29, em
Florianópolis, no Centro de Cultura e Eventos da Universidade Federal
de Santa Catarina (campus universitário).
Já há alguns livros do filósofo publicados no Brasil. “Estado de
Exceção” (Boitempo) foi lançado em 2004. Também foram editados
“Infância e História” (UFMG) e “Homo Sacer – O Poder Soberano e a Vida
Nua” (UFMG), que esgotou a tiragem inicial e já está na primeira
reimpressão.
A editora da UFMG planeja novos lançamentos do autor. Vai publicar em
novembro “Il Linguaggio e la Morte” (A Linguagem e a Morte) e, em
dezembro, “Stanze” (Quartos). A mesma editora está negociando a
publicação para o início do próximo ano de “L’Aperto -L’Uomo e
l’Animale” (O Aberto – O Homem e o Animal).
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O capitalismo como religião
Em texto preparado para conferência que fará no Brasil, o pensador
marxista Michael Löwy segue Walter Benjamin e defende que o sistema
social atual é um fenômeno essencialmente religioso
MICHAEL LÖWY
Entre os documentos inéditos de Walter Benjamin [1892-1940] publicados
em 1985 por Ralph Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser no volume 6 de
“Gesammelte Schriften” (Suhrkamp Verlag), há um particularmente
obscuro, mas que parece de uma atualidade surpreendente: “O capitalismo
como religião”. São três ou quatro páginas contendo anotações e
referências bibliográficas; denso, paradoxal, às vezes hermético, o
texto não se deixa decifrar facilmente. Como não se destinava à
publicação, o autor não tinha qualquer necessidade de torná-lo legível
e compreensível… Os comentários a seguir são uma tentativa parcial de
interpretação, baseada mais em hipóteses do que em certezas, e deixando
de lado certas “zonas de sombra”.
O texto de Benjamin é, com toda evidência, inspirado por “A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo” (Cia. das Letras, 2004), de
Max Weber [1864-1920]. No entanto, como veremos, o argumento de
Benjamin vai muito além de Weber e, sobretudo, substitui sua abordagem
“axiologicamente neutra” (Wertfrei) por um fulminante requisitório
anticapitalista.
“É preciso ver no capitalismo uma religião”. Com essa afirmação
categórica começa o fragmento. Segue-se uma referência, mas também um
distanciamento em relação a Weber: “Demonstrar a estrutura religiosa do
capitalismo -isto é, demonstrar que ele é não somente uma formação
condicionada pela religião, como pensa Weber, mas um fenômeno
essencialmente religioso- nos levaria ainda hoje pelos meandros de uma
polêmica universal desmedida”.
Benjamin continua: “Podemos entretanto, desde já, reconhecer no tempo
presente três traços dessa estrutura religiosa do capitalismo”.
Benjamin não cita mais Weber, mas de fato os três pontos se alimentam
de idéias e argumentos do sociólogo, dando-lhes um novo alcance,
infinitamente mais crítico, mais radical -social e politicamente, mas
também do ponto de vista filosófico (teológico?)- e perfeitamente
antagônico à tese weberiana da secularização.
O culto
“Primeiramente, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez
a mais extremamente cultual que já existiu. Nada nele tem significado
que não esteja em relação imediata com o culto, ele não tem dogma
específico nem teologia. O utilitarismo ganha, desse ponto de vista,
sua coloração religiosa.”
Portanto, as práticas utilitárias do capitalismo -investimento do
capital, especulações, operações financeiras, manobras bolsistas,
compra e venda de mercadorias- são equivalentes a um culto religioso. O
capitalismo não exige a adesão a um credo, a uma doutrina ou a uma
“teologia”; o que conta são as ações, que representam, por sua dinâmica
social, práticas cultuais. Benjamin, contradizendo um pouco seu
argumento sobre a Reforma e o cristianismo, compara essa religião
capitalista ao paganismo original, também ele “imediatamente prático” e
sem preocupações “transcendentes”.
Mas o que é que permite assemelhar essas práticas econômicas
capitalistas a um “culto”? Benjamin não o explica, mas utiliza, algumas
linhas depois, o termo “adorador”; podemos assim considerar que o culto
capitalista comporta certas divindades que são objeto de adoração. Por
exemplo: “Comparação entre as imagens de santos das diferentes
religiões e as notas de dinheiro dos diversos países”. O dinheiro, em
forma de papel-moeda, seria assim o objeto de um culto análogo ao dos
santos das religiões “comuns”.
No entanto, o papel-moeda é apenas uma das manifestações de uma
divindade mais fundamental no sistema capitalista cultual: o
“dinheiro”, o deus Mammon, ou, segundo Benjamin, “Plutão… deus da
riqueza”. Na bibliografia do fragmento é mencionada uma passagem
virulenta contra o poder religioso do dinheiro: está no livro “Aufruf
zum Sozialismus”, do pensador anarquista judeu-alemão Gustav Landauer,
publicado em 1919, pouco antes do assassinato de seu autor por
militares contra-revolucionários. Na página indicada pela nota
bibliográfica de Benjamin, Landauer escreve:
“Fritz Mauthner (“Wörterbuch der Philosophie”) mostrou que a palavra
“Deus” (Gott) é originariamente idêntica a “ídolo” (Götze), e que as
duas querem dizer “o fundido” [ou “o escorrido’] (Gegossene). Deus é um
artefato feito pelos humanos, que ganha uma vida, atrai para si as
vidas dos humanos e finalmente torna-se mais poderoso que a humanidade.
O único escorrido (Gegossene), o único ídolo (Götze), o único Deus
(Gott) a que os humanos deram vida é o dinheiro (Geld). O dinheiro é
artificial e é vivo, o dinheiro produz dinheiro e mais dinheiro, o
dinheiro tem todo o poder do mundo. Quem não vê, quem ainda hoje não
vê, que o dinheiro, que o Deus não é outra coisa senão um espírito
oriundo dos seres humanos, um espírito que se tornou uma coisa (Ding)
viva, um monstro (Unding), e que ele é o sentido (Sinn) que se tornou
louco (Unsinn) de nossa vida? O dinheiro não cria riqueza, ele é a
riqueza; ele é a riqueza em si; não existe outro rico além do
dinheiro”.
É verdade que não podemos saber até que ponto Benjamin compartilhava
esse raciocínio de Landauer; mas podemos, a título de hipótese,
considerar esse trecho, mencionado na bibliografia, como um exemplo do
que ele entende por “práticas cultuais” do capitalismo.
Sem trégua
A segunda característica do capitalismo “está estreitamente ligada a
essa concreção do culto: a duração do culto é permanente”. “O
capitalismo é a celebração de um culto “sem trégua e sem piedade”. Não
há “dias comuns”, nenhum dia que não seja de festa, no sentido terrível
da utilização da pompa sagrada, da extrema tensão que habita o
adorador.”
Sem descanso, sem trégua e sem piedade: a idéia de Weber é retomada
por Benjamin, quase literalmente; não sem ironia, aliás, evocando o
caráter permanente dos “dias de festa”: na verdade, os capitalistas
puritanos aboliram a maioria dos feriados católicos, considerados um
incentivo ao ócio. Portanto, na religião capitalista, cada dia vê a
mobilização da “pompa sagrada”, isto é, os rituais na bolsa ou na
fábrica, enquanto os adoradores seguem, com angústia e uma “extrema
tensão”, a subida ou a descida das cotações das ações.
As práticas capitalistas não conhecem pausa, elas dominam a vida dos
indivíduos da manhã à noite, da primavera ao inverno, do berço ao
túmulo. Como bem observa Burkhardt Lindner, o fragmento empresta de
Weber o conceito do capitalismo como sistema dinâmico, em expansão
global, impossível de deter e do qual não podemos escapar.
Enfim, a terceira característica do capitalismo como religião é seu
caráter culpabilizador: “O capitalismo é provavelmente o primeiro
exemplo de um culto que não é expiatório (entsühnenden), mas
culpabilizador”. Benjamin continua seu requisitório contra a religião
capitalista: “Nisso, o sistema religioso é precipitado em um movimento
monstruoso. Uma consciência monstruosamente culpada que não sabe expiar
se apodera do culto, não para nele expiar essa culpa, mas para torná-la
universal, para fazê-la entrar à força na consciência e, enfim e
sobretudo, para implicar Deus nessa culpa, para que no fim das contas
ele mesmo tenha interesse na expiação”.
Benjamin evoca, nesse contexto, o que chama de “ambigüidade da palavra
Schuld” – isto é, ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Segundo Burkhard
Lindner, a perspectiva histórica do fragmento baseia-se na premissa de
que não podemos separar, no sistema da religião capitalista, a “culpa
mítica” da dívida econômica.
Encontramos em Max Weber dois raciocínios análogos, que também jogam
com os dois sentidos de “dever”: para o burguês puritano, “o que
consagramos a fins “pessoais” é “roubado” do serviço à glória de Deus”;
tornamo-nos assim ao mesmo tempo culpados e “endividados” em relação a
Deus. “A idéia de que o homem tem “deveres” para com as posses que lhe
foram confiadas e às quais ele está subordinado como um intendente
devotado (…) pesa sobre sua vida com todo o seu peso gélido. Quanto
mais aumentam as posses, mais pesado torna-se o sentimento de
responsabilidade (…) que o obriga, para a glória de Deus (…), a
aumentá-las por meio de um trabalho sem descanso”. A expressão de
Benjamin “fazer a culpa entrar à força na consciência” corresponde bem
às práticas puritanas/capitalistas analisadas por Weber.
Amplitude
Mas parece-me que o argumento de Benjamin é mais geral: não é somente
o capitalismo que é culpado e “endividado” com seu capital -a culpa é
universal. Assim, o próprio Deus encontra-se envolvido nessa culpa
geral: se os pobres são culpados e excluídos da graça, e se, no
capitalismo, eles estão condenados à exclusão social é porque “é a
vontade de Deus” ou, o que é seu equivalente na religião capitalista, a
vontade dos mercados.
Bem entendido, se nos situarmos no ponto de vista desses pobres e
endividados, é Deus que é o culpado, e com ele o capitalismo. Em
qualquer dos casos, Deus está inextricavelmente associado ao processo
de culpabilização universal.
Até aqui vimos bem o ponto de partida weberiano do fragmento, em sua
análise do capitalismo moderno como religião originária de uma
transformação do calvinismo; mas há um trecho em que Benjamin parece
atribuir ao capitalismo uma dimensão transhistórica que não é mais a de
Weber -e tampouco de Marx: “O capitalismo se desenvolveu no Ocidente
como um parasita do cristianismo -devemos demonstrá-lo não somente a
propósito do calvinismo, mas também das outras correntes ortodoxas do
cristianismo-, de tal sorte que no fim das contas a história do
cristianismo é essencialmente a de seu parasita, o capitalismo”.
O resultado do processo “monstruoso” de culpabilização capitalista é a
generalização do “desespero”: “Ele está ligado à essência desse
movimento religioso -que é o capitalismo- de perseverar até o fim, até
a completa culpabilização final de Deus, até um estado do mundo
atingido por um desespero que ainda “esperamos” que seja justo. O que o
capitalismo tem de historicamente inédito é que a religião não é mais
reforma, mas a ruína do ser. O desespero se estende ao estado religioso
do mundo do qual se deveria esperar a salvação”.
Não estamos distantes, aqui, das últimas páginas da “Ética
Protestante”, em que Weber constata, com um fatalismo resignado, que o
capitalismo moderno “determina, com uma força irresistível, o estilo de
vida do conjunto dos indivíduos nascidos nesse mecanismo -e não somente
daqueles que a aquisição econômica concerne diretamente”.
Ele compara essa coerção a uma espécie de prisão na qual o sistema de
produção racional de mercadorias encerra os indivíduos: “Segundo as
opiniões de Baxter, a preocupação pelos bens externos não deveria pesar
sobre os ombros de seus santos senão como “um leve manto que a qualquer
momento se pode retirar”. Mas a fatalidade transformou esse manto em
uma jaula de aço”.
De Weber a Benjamin nos encontramos em um mesmo campo semântico, que
descreve a lógica impiedosa do sistema capitalista. Mas por que ele é
produtor de desespero?
Sendo a “culpa” dos humanos, seu endividamento para com o capital,
perpétua e crescente, nenhuma esperança de expiação é permitida. O
capitalista deve constantemente aumentar e ampliar seu capital, sob
pena de desaparecer diante de seus concorrentes, e o pobre deve
emprestar dinheiro para pagar suas dívidas.
Segundo a religião do capital, a única salvação reside na
intensificação do sistema, na expansão capitalista, no acúmulo de
mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece
sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso
do mundo “do qual se deveria esperar a salvação”.
Este texto é uma versão editada da conferência que Michael Löwy fará
na USP no dia 29 de setembro.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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LÖWY NO BRASIL
DA REDAÇÃO
Michael Löwy (1938) participa a partir do dia 27, em São Paulo, do 2º
Seminário Margem Esquerda, que tem como tema “As Aventuras de Karl Marx
contra o Barão de Münchhausen – A Obra Indisciplinada de Michael Löwy”.
O evento comemora os dez anos da editora Boitempo, que lançou este ano
seu livro “Walter Benjamin – Aviso de Incêndio”. Serão ao todo oito
mesas-redondas para discutir a obra do diretor emérito de pesquisas do
Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS).
Brasileiro, radicado há quatro décadas na França, Löwy é especialista
nas obras de Marx, Rosa Luxemburgo e Lukács. É autor de “Estrela da
Manhã – Surrealismo e Marxismo” (Civilização Brasileira), “A Teoria da
Revolução no Jovem Marx” (Vozes), “Marxismo na América Latina” (Perseu
Abramo), “Evolução Política de Lukács” (Cortez) e “Romantismo e
Messianismo” (Perspectiva), entre outros.
Os debates em São Paulo vão ocorrer na USP (de 27 a 29 de setembro) e
na PUC (dia 30) com a presença de nomes como Francisco de Oliveira,
Jorge Grespan, Marcelo Ridenti, Olgária Mattos, Alfredo Bosi, Flávio
Aguiar, Emir Sader, Gabriel Cohn, Paul Singer, Luiz Eduardo Wanderley e
Roberto Schwarz.
O seminário também ocorre em Araraquara e em Campinas. Na Unesp de
Araraquara haverá debate (dia 3/10) com Leda Paulani, Maria Orlanda
Pinassi e Valério Arcary. Em Campinas, na Unicamp (dia 5/ 10), ocorre
uma mesa-redonda com Francisco Foot Hardman, Marcelo Ridenti e
Jeanne-Marie Gagnebin. As entradas são gratuitas (informações podem ser
obtidas no site http://www.boitempoeditorial.com.br ou pelo tel. 0/xx/ 11/
3875-7285).
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Eleições de hoje na Alemanha expõem o que a sincronia das crises no
Sul, do modelo soviético e nos países centrais nos anos 80 já indicava
-o Estado de Bem-Estar não passou de realização efêmera do pós-guerra
A ressaca do fordismo
ROBERT KURZ
COLUNISTA DA FOLHA
Durante muito tempo pareciam bem definidas as fronteiras entre a
miséria em massa e as relativas condições de bem-estar coletivo. A
linha demarcatória separava essencialmente o Norte do Sul do planeta.
Essa constelação foi, no entanto, apenas um produto da história depois
da Segunda Guerra.
Nos centros capitalistas, a mobilização das indústrias fordistas
desencadeou um impulso sem precedentes de ocupação em massa e
acumulação de capital, vinculados à ascensão dos sindicatos e da
social-democracia. A “mobilização automotiva” da sociedade ia a par com
a construção crescente de uma rede de seguridade social (o Estado de
Bem-Estar Social), especialmente profunda na Alemanha Ocidental e, em
parte, na França. Até mesmo no espaço do liberalismo econômico
tradicional anglo-saxão, os governos trabalhistas no Reino Unido e a
“grande sociedade” do presidente Lyndon Johnson, nos EUA, na tradição
do “New Deal”, geravam novas estruturas sociais.
O sociólogo alemão Ulrich Beck descreveu a ascensão social na era
fordista do pós-guerra como “efeito elevador”: apesar das permanentes
diferenciações sociais, a sociedade como um todo era elevada a um
patamar superior. Os salários reais se multiplicavam, enquanto as
jornadas de trabalho, de modo inverso, declinavam constantemente. A
expectativa geral de vida aumentava para todos por meio de um sistema
médico melhorado.
Foi essa prosperidade sem precedentes do Norte que se tornou o
paradigma extremamente atrativo do “desenvolvimento” para os países do
Sul. Nisso se manifestou um paradoxo histórico, pois, enquanto no
Sudeste Asiático e na África ainda eclodiam as últimas guerras de
descolonização, e, simultaneamente, nos países já descolonizados,
articulavam-se os movimentos contra a dependência econômica da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos, o paradigma do desenvolvimento dos
centros capitalistas era ainda, contudo, o modelo a ser trilhado. Os
ex-colonizados desejavam crescer nas formas sociais dos antigos
senhores.
A expansão da crise foi apreendida de modo invertido, como se o
capitalismo fosse o grande vencedor. Na realidade, a crise da terceira
revolução industrial já vinha há muito minando o corpo social do
capitalismo original
Descolonização e esforços de independência econômica eram determinados
pelo desejo de atingir, por conta própria, a almejada prosperidade
fordista e seu correlato patamar de consumo de massa, mesmo quando, a
contragosto da superpotência americana, mecanismos de capitalismo de
Estado em moldes soviéticos fossem preferidos. Uma alternativa
histórica para a mobilização do “trabalho abstrato” e da “riqueza
abstrata”, como Marx denominara a lógica do moderno sistema de produção
de mercadorias, não foi, no entanto, cogitada em nenhuma parte.
Enquanto os centros capitalistas, em especial nos Estados Unidos,
projetavam para fora uma imagem política inimiga para os movimentos
sociais do Sul, estes importavam, ao mesmo tempo, as estruturas da
reprodução capitalista: o moderno trabalho assalariado e a apenas
aparente isonomia burguesa da relação entre os gêneros, bem como os
padrões e a imaginação do consumo ou o modelo do “Welfare State”.
Independentemente de orientação política durante a Guerra Fria, os
“milagres econômicos” no Japão e, sobretudo, na Alemanha, eram tidos
como os modelos secretos.
A verdadeira crise
Mas a “era de ouro” fordista do pós-guerra permaneceu, no entanto,
para os países pós-coloniais do Sul, uma miragem. A tarefa de criar uma
industrialização recuperadora, um consumo de massa e um “Welfare State”
deu certo apenas por um curto período e em fórmulas de segunda mão. A
distância que os separava dos centros econômicos já era muito grande,
os custos prévios do “desenvolvimento” revelaram-se muito altos. O
resultado foi um endividamento externo crescente. Quando a terceira
revolução industrial da microeletrônica aposentou o fordismo, os custos
operacionais e sociais da inovação aumentaram de tal forma que não
apenas os modelos de desenvolvimento nacionais do Sul quebraram mas
também a parte do socialismo de Estado do Norte não o pôde mais
acompanhar.
De fato, essa tendência ruinosa poderia ter se tornado claramente
visível de duas maneiras: em primeiro lugar, a tentativa de imitação de
formas industriais, socioeconômicas, da Europa Ocidental e dos Estados
Unidos, já fracassara para a maior parte da humanidade; em segundo
lugar, com o fim da União Soviética e da Alemanha Oriental, a crise
deste tipo de sociedade já havia penetrado o Norte globalizado e também
tinha que atingir os seus próprios centros.
Em vez disso, a expansão da crise foi apreendida exatamente de modo
invertido com os óculos dos velhos antagonismos, como se o capitalismo
original fosse o grande vencedor da história e todos os retardatários
tivessem que duplicar ou triplicar esforços na cópia desse modelo. Na
perspectiva das regiões em colapso pela crise global, vigoravam ainda,
no centro do capitalismo, aquelas supostas condições “paradisíacas” de
prosperidade fordista, pelo menos se confrontadas com a própria miséria
local. Mas isto era apenas uma ilusão de ótica.
Na realidade, a crise da terceira revolução industrial já vinha há
muito minando o corpo social do capitalismo original. Já nos anos 1980,
a “plena ocupação” fordista convertera-se num desemprego estrutural em
massa. Por meio dos novos potenciais de inovação, o patamar desse
desemprego estrutural aumentava de ciclo em ciclo. Rápida desativação
de postos de trabalho e crescente subocupação constituem apenas o
reverso da medalha de uma acumulação insuficiente de capital, do qual,
em última instância, depende o “Welfare State”. A rede social expandida
do “boom” fordista começara a romper, executada por meio de
contra-reformas neoliberais.
Schröder, a vanguarda liberal
Não é surpresa que Estados Unidos e Reino Unido, por meio da
“reaganomics” e do thatcherismo, sejam seus predecessores e
retornassem, dessa forma, apenas às suas respectivas tradições do
mercado radical. Mas, na Europa continental, essas contra-reformas
encontravam ainda resistência. Ainda nos anos 1990, os modelos de
Estado de Bem-Estar francês e alemão, o assim chamado “capitalismo
renano”, eram considerados como uma alternativa à “revolução
neoliberal” anglo-saxã.
O processo de crise da terceira revolução industrial supera, contudo,
facilmente, todas as fronteiras nacionais, históricas e culturais. A
lógica geral capitalista repousa mais fundo do que qualquer “modelo”
político econômico específico. Mesmo o tão característico Estado do
Bem-Estar Social alemão, que parecia construído para a eternidade,
erodia-se irreversivelmente na era do chanceler conservador Helmut
Kohl, nos anos 80 e 90. Nesse período, o desemprego atingia sobretudo
as camadas menos qualificadas do mercado, pessoas de escolaridade
incompleta e trabalhadores de fábrica sem formação técnica.
Quando a coalização vermelho-verde do chanceler Gerhard Schröder
chegou ao comando, muitos acreditavam que o novo governo iria levar a
sério as velhas reivindicações da geração de 1968 e deter o desmonte
social, ou mesmo, em parte, revertê-lo. Mas foi exatamente o contrário
o que aconteceu. A coalização vermelho-verde revelou-se, diante de
renovados recordes de desemprego e sob a pressão da globalização,
precisamente como a vanguarda dos cortes mais radicais e extensivos já
empreendidos no sistema social.
Para se compreender o que está acontecendo na Alemanha, seria preciso
detalhar de maneira clara um pano de fundo social. O desemprego atinge
o país, como em outros centros capitalistas, cada vez mais: as camadas
“qualificadas”, técnicos, professores, assistentes sociais, advogados,
médicos e parte do pequeno empresariado. É a derrocada das “novas
classes médias”.
O desemprego crescente das camadas médias não pode mais ser amortecido
socialmente pelo Estado. A administração da crise capitalista obriga a
se lançar mão de todas as formas de poupança privada, herança e
patrimônio imobiliário; casas são leiloadas, melhores moradias têm que
ser abandonadas por um aluguel mais baixo. A “gordura fordista” é
consumida. Para dizer de maneira drástica: assim como no Terceiro
Mundo, uma grande parte das camadas qualificadas e da inteligência vai
sendo sucessivamente africanizada.
Uma minoria reduzida da sociedade fica insulada e, assim como nos
Estados Unidos e nas megalópoles do Terceiro Mundo, surgem também na
Alemanha aquelas perigosas “no go areas”, de um lado, e guetos de luxo,
de outro, com serviços privados de segurança, não apenas na capital
Berlim. A miséria atingiu uma dimensão como nunca se viu na história
alemã recente. E essa miséria, que sempre fora bem camuflada na
Alemanha, começa cada vez mais a mostrar sua face: desabrigados já não
passam mais despercebidos, bem como cada vez há mais crianças de rua.
Por aqui, reconhecemos os pobres sobretudo pelas roupas amarrotadas e
pelos dentes esburacados, já que o tratamento dentário e as obturações
foram cortados da lista dos benefícios cobertos pelo seguro médico
legal.
Na França e demais países da União Européia vão se consumando
processos similares. A miséria social e econômica transformou-se de
repente na grande crise da União Européia, cujo processo de integração
parecia até há pouco irreversível. Nesse ínterim, as maiorias sociais
empobrecidas e ameaçadas pela miséria enxergam no forte neoliberalismo
do Comissariado Europeu apenas o instrumento da globalização, por meio
do qual se destrói o bem-estar. Mas o “não” à Constituição neoliberal
da União Européia não tem nenhum conteúdo libertador. Ele foi, em
primeira linha, um retrocesso obstinado a posições racistas e
nacionalistas no mais fundo rincão do centro social. Não se trata aqui
da articulação de uma resistência social geral, mas de uma luta pelas
linhas de demarcação da exclusão social.
Em primeiro lugar, a classe média qualificada declinante não quer se
alinhar às camadas mais baixas e rebela-se em ser degradada ao nível
destas. Em segundo, a miséria nacional de todas as classes volta-se
contra os estrangeiros. Em terceiro, justamente entre acadêmicos e
técnicos qualificados, o descenso social exprime-se também como crise
da identidade masculina, que neles começa a se manifestar.
Neste clima reacionário em vez de emancipatório contra o
neoliberalismo, as fronteiras entre direita e esquerda tornam-se cada
vez mais fluidas. Uma dissidência de esquerda do Partido Social
Democrata, sob a égide de seu antigo chefe Oskar Lafontaine, hoje
fundida na mesma chapa ao Partido do Socialismo Democrático (PDS), que,
por sua vez, era a sigla redenominada do antigo Partido do Estado da
República Democrática Alemã, vem crescendo nas pesquisas de voto e tem
boas chances nas eleições antecipadas.
Mas não se sabe bem ao certo o quanto de direita existe nessa
esquerda. Lafontaine, com suas investidas contra os “trabalhadores
estrangeiros” (uma palavra do jargão nazista), está angariando cada vez
mais votos do espectro da direita radical hostil aos estrangeiros.
Segundo uma pesquisa sociológica publicada em junho de 2005, pelo menos
20% dos membros dos sindicatos pensam de maneira anti-semita e
nacionalista. Aquilo que para a esquerda tradicional vem sendo
denominado como o início de uma nova “luta de classes” é, em grande
parte, apenas a máscara do ódio da concorrência da classe média
declinante que se refugia no neochauvinismo da crise da identidade
masculina e no retorno à nostalgia nacional.
O declínio da Alemanha e a crise da União Européia devem oferecer ao
Sul globalizado uma imagem tenebrosa. A ilusão ótica de uma riqueza
durável e de um conforto pulverizam-se. Quanto mais o Terceiro Mundo se
faz visível no Primeiro Mundo, torna-se cada vez mais questionável a
orientação dos modelos sociais do centro capitalista. Não é mais o
Norte que mostra ao Sul seu modelo de desenvolvimento, mas exatamente o
contrário: o Sul mostra ao Norte o futuro da crise.
O mundo moderno do “trabalho abstrato” e da “riqueza abstrata” está à
disposição na crise mundial do século 21. Uma nova perspectiva
emancipatória para além do sistema de produção de mercadorias somente
poderá ser atingida quando as tendências observadas em todas as partes
a uma renacionalização ideológica forem radicalmente criticadas. O
liberalismo obstinado das classes globalizadas, de um lado, e a
nostalgia nacional das classes médias declinantes, por outro, não
constituem nenhuma alternativa aceitável.
Robert Kurz é sociólogo alemão, autor de “Os Últimos Combates”
(Vozes). Escreve regularmente na seção “Autores”, do Mais!.
Tradução de José Galisi Filho.
Fonte:http://www.listas.unicamp.br/pipermail/filosofiasudeste-l/2005-September/000268.html